Presidente decidiu vetar como ação de governo qualquer ato – fosse de repúdio, fosse de apoio – relacionado ao episódio
Faz 60 anos que o Brasil se divide em relação aos fatos ocorridos naquele 31 de março de 1964 e seus desdobramentos.
Não seria diferente seis décadas depois, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decide vetar como ação de governo qualquer ato – fosse de repúdio, fosse de apoio – relacionado ao golpe militar que depôs um presidente civil, desrespeitou a Constituição da época e promoveu como política de estado uma violenta perseguição política de opositores.
A controvérsia ocorre mesmo sem haver dúvidas sobre a convicção de Lula acerca da democracia no Brasil ou sobre o repúdio à ditadura militar.
O presidente começou a carreira sindical no período de arbítrio, foi monitorado pelo regime desde 1976 e preso em 1980 por liderar greve na região industrial do ABC paulista.
Foi nesse ano, por sinal, que ele pôde deixar a prisão para velar o corpo da mãe, dona Lindu, a bordo de uma viatura do temido Departamento de Ordem Política e Social (Dops) – diferente do que ocorreu já sob a democracia, quando da morte do irmão mais velho do petista, em 2019.
Lula nunca recorreu a eufemismos ao se referir ao período de arbítrio. Sempre chamou a ditadura e o golpe militar pelos nomes que têm.
Na recente entrevista ao jornalista Kennedy Alencar, em que disse que não vai “ficar remoendo” o passado, o presidente afirmou que o período de arbítrio “causou o sofrimento que causou” e o definiu como “uma parte da história do Brasil que a gente ainda não tem todas as informações, porque tem gente desaparecida ainda, porque tem gente que pode se apurar”.
Disse mais: “Eu estou mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023 do que com 64”.
Ética da responsabilidade
São declarações, assim como a decisão de governo, que ecoam o conceito weberiano da ética da responsabilidade. Mais de um século atrás, o sociólogo Max Weber apontou que não se trata de algo que contrasta em absoluto com a ética da convicção (ou de fins últimos), mas sim de suplementos de quem pode ter “vocação para a política”.
Desde o dia 1 do atual mandato, a partir do resultado mais acirrado em eleições presidenciais desde a redemocratização, Lula tem sido cobrado a fazer gestos de pacificação nacional e criticado quando reforça a polarização com o antecessor, Jair Bolsonaro (PL), um notório admirador da ditadura e apologista dos cinco presidentes militares – mesmo tendo sido definido por Ernesto Geisel como “mau militar”.
É compreensível que, ao adotar a postura conciliatória em assunto tão sensível e ao ainda não ter retomado a atuação da Comissão de Mortos e Desaparecidos, Lula tenha decepcionado apoiadores que têm envolvimento direto com os perseguidos, torturados e assassinados pelo aparato estatal.
Mas seria no mínimo injusto não reconhecer o racional de tal atitude, pela qual o presidente lembra não ser só o chefe de governo, mas o chefe do Estado brasileiro.
Da mesma forma, importante também reconhecer a mobilização de setores da sociedade civil em marcar os 60 anos do golpe militar – talvez até com maior intensidade diante da postura do atual governo.
Esse episódio mostra que cabe não só ao Estado ou ao presidente da República, mas ao país como um todo, atuar para que sejam fechadas as feridas ainda abertas da tragédia de 60 anos atrás, quase repetida como farsa no 8 de janeiro.